Que esse livro possa ser refletido e possa contribuir para acelerar o movimento de regeneração que realiza minha raça de baixo do seu azul e claro das Antilhas.
Que possa inspirar a todos os filhos da raça negra, dispersos na terra imensa, ao amor e progresso, a justiça e a liberdade! Dedico ao Haiti, dedico-o à todos eles, aos deserdados do presente e aos gigantes do futuro (Firmim, 1885 (2013, p. 23) (tradução livre).
As tarefas de toda nova geração de militantes passa pela recuperação de certas tradições, estratégias e táticas no campo politico, como também toda uma literatura, antigos autores que dão conta de novos temas. Ou melhor, velhos temas que se apresentam como novos e que foram debatidos ao seu modo, por outras gerações, mas que ainda servem de orientação para os novos militantes. Aqui estamos no terreno dos clássicos e, tal como define Ítalo Calvino: “Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”1.
O enfrentamento ao racismo no mundo contemporâneo exige da geração atual uma ampla capacidade de articulação. Beber na fonte dos mais velhos, para não querer inventar a roda, mas, ao mesmo tempo, coloca lá para rodar diante das novas veredas e caminhos a serem percorridos. Nesse sentido, a obra de Antenor Firmim(1850-1911) urge em se tornar parte da bibliografia de referência para a nova geração da militância antirracista brasileira. Conforme Machado de Assis ” O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assunto remotos no tempo e espaço.”2 Essa é a melhor descrição para o legado teórico desse haitiano que escreveu sobre temas de seu tempo, fez embates que o colocaram como uma grande referência teórico para seus contemporâneos, ainda que sua obra atravesse o tempo e ainda tenha valor teórico no século XXI.
Seu texto mais importante é Igualdade das Raças Humanas3(1885) um clássico! A obra surgiu como resposta ao texto Ensaio sobre as desigualdades das raças humanas(1855) escrita pelo eugenista francês Arthur de Gobineau(1816-1882). Para contrapor o ideário do grande mentor do pensamento racista do século XIX, Firmim, neste grande ensaio, discute temas como: 1) As bases teóricas de uma antropologia não eugenista, antecipando temas depois discutidos pelo pai da antropologia cultural, Franz Boaz; 2) O debate sobre miscigenação e a falta de base cientifica da discussão sobre degeneração das raças; 3) as bases sócio culturais de sociedades não europeias e suas contribuições para o conhecimento universal. Aqui antecipa um debate que entre nós ficou consagrado pelos escritos de Cheik Anta Diop (1923-1986): A civilização egípcia como sociedade negro africana. Sendo rigoroso, esse tema do Egito enquanto civilização de origem africana já era debatido por historiadores desde a Grécia antiga. Mas de fato, o discurso histórico colonial e neocolonial destituiu essa discussão e consagrou uma histórica única da Europa como universal. Ao fim e ao cabo, o fator de destaque das contribuições de Firmim e Diop são as bases contemporâneas da discussão do Egito negro e africano, as características de seus estudos, bem como o método e a estrutura de suas respectivas contribuições para o tema. Em ambos, temos um estatuto teórico, com ampla margem daquilo podemos chamar de ciência moderna.
Rene Deprest (1926 -) no seu célebre ensaio Bom dia e adeus à negritude(1980)4 afirma que as contribuições de Firmim antecipam todo o debate sobre relações raciais empreendidos pela Unesco na metade do século XX, com a diferença de que já afirmava, ainda no século XIX, que as diferenças raciais eram forjadas enquanto ideologia para justificar a exploração do homem pelo homem. Deprest ainda explora a influência de Firmim, em seu tempo, à figuras ilustres do campo progressista como José Martí, líder da luta pela independência cubana e grande teórico do que podemos chamar de pensamento social latino americano.
Os cientistas sociais Jean Maxius Bernard e Luis Toledo Sande também apontam os desdobramentos teóricos da obra de Firmim em obras como a do eminente sociólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1961) e toda sua elaboração sobre as influencias africanas na formação social de Cuba.
Em suma, Firmim escreveu contra Goubineau, antecedeu Cheik Anta Diop, e subsidiou autores e lideranças politicas latino americanas como José Martí e Fernando Ortiz em fins do século XIX e inicio do século XX. Foi um arauto da luta antirracista internacional e certamente tem muito a dizer ao movimento negro brasileiro.
1 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
2 ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In:______. Obra completa em quatro volumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. v. 3.
3 Tradução livre.
4 DEPESTRE, René. Bom-dia e adeus à negritude. In http://www.ufrgs.br/cdrom/depestre/depestre.pdf. Acessado em 04 de março de 2017.
Referencia Bibliográfica
FIRMIM, Antenor. Igualdad de las razas humanas: Antropologia positiva. Havana: Editorial de Ciências Sociales, 2013.