ainda mais difícil. O peso dos meus cachos simbolizam um embranquecimento
que disfarça o peso do “racismo nosso” de cada dia.
Ao cortar o cabelo para deixá-lo ainda mais crespo e assumir o meu lugar de
mulher negra em uma sociedade machista, misógina e racista tornou-se uma
escolha completamente difícil. Enegrecer me coloca em um lugar marginal e
extremamente dolorido.
O racismo é sutil na maioria das vezes, mas há momentos que ele despedaça
a alma…
Vejamos:
Minha mãe que é branca de olhos azuis torna-se minha patroa e eu sua
“acompanhante”;
Meu marido que é branco ao irmos ao shopping torna-se “minha garantia” de
que serei bem atendida, pois ele aparenta ter dinheiro para pagar;
Sempre que vou ao cinema, ao teatro, ao museu e etc, não localizo outras
pessoas como eu, ou seja, pessoas negras. Somos poucos a termos acesso a
esses lugares;
Ao andar pelas ruas torno-me um sujeito que representa o medo, o perigo e a
violência, pois minha negritude simboliza a marginalidade. As senhoras
seguram as bolsas com tanta força que nem percebem que a minha mochila
possui um valor financeiro maior do que elas transportam;
Ao pegar um Uber, o motorista sempre acha que é a outra mulher (branca) que
o chamou e se assusta quando bato no vidro para poder entrar;
Sempre que vou a farmácia da esquina para comprar algo, o segurança, que
também é negro, fica me seguindo com os olhos para verificar se não estou
roubando;
Nas lojas quase nunca as vendedoras esperam que eu faça compras e quase
nunca me atendem;
Ao frequentar festas quase sempre sou a única negra convidada e os demais
negros são trabalhadores;
Quando subo a rua de casa, tarde da noite, acredito que posso ser assaltada e
esqueço que a pessoa que está do outro lado da rua está apavorada e
correndo de mim.
Posso ter doutorado, posso dar aula na universidade pública, posso ter acesso
cultural, social, político e econômico, mas ao enegrecer nada disso importa.
Posso andar cheirosa e com os melhores perfumes, posso ter estudado na
Europa, posso falar dois ou três idiomas, posso publicar artigos e livros, posso
ter ido a França, Inglaterra, Espanha, Holanda, Bélgica, Argentina e demais
países quantas vezes eu quiser, posso continuar estudando, posso comprar
roupas caras… Porém….
Sempre vão me lembrar e dizer que sou negra e que não posso estar ali.
Até dizem que esse tal de racismo não existe, só que ao Enegrecer ainda mais,
posso afirmar que o sinto cada vez mais forte todos os dias… Não sabia que o
peso dos meus cachos significava tanto para a sociedade e que cortar o cabelo
me aproximava de um povo que nunca me disseram que era meu.
Apenas cortei o cabelo…
—
Rachel Gouveia Passos
Professora Adjunta na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Estudo e Extensão em Serviço Social, Saúde Mental e Atenção Psicossocial (NUPESS/ICSA/UFRRJ)