José Carlos Limeira, um meiota no campo da literatura

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No dia doze do mês três, o inverno que em mim faz festa, tumultuou de novo. Era fim de tarde e a noite já se fazia presente, não apenas na menina dos meus olhos, mas na janela do meu quartinho na Baixada do Glicério: Sueide Kintê, “dona de meus versos”, me avisou do falecimento do poeta, essa noticia veio como tempestade fazendo enchente em meu peito, e o coração não de todo afogado ainda sonhou desejando manter viva a arte do escritor José Carlos Limeira.

Sou de beirada de campo, me criei naquela peleja, de ouvir histórias, cantar samba, estar presente nos debates tensos. O texto de José Carlos Limeira “Esporte Clube Coração Saudoso” publicado no “Cadernos Negros 4“, é um hino pra minha cachola, “Toti Negão era bom de bola, em dia de decisão acordava cedo… O Corações Futebol Clube era a paixão maior de Toti Negão, pelo time, ele, seria capaz de deixar a Dete em casa no domingo inteiro, e olha que a crioula quando dava aquele sorriso com os dentes de algodão e gosto de fruta madura ficava difícil pra qualquer cristão escapar…” e o que te conto é que esse conto desenrola faceiro nas páginas do Cadernos, se eu te disser que nessa prosa o Toti Negrão dá uns murro no puliça, cê bota fé? Tô ligado, também me inspirou. E nós que somos de beirada de campo confabulamos a vida, ligando o futebol, José Carlos Limeira, ao meu ver, seria um meiota zica, como diriam meus amigos de várzea, aquele malandro que põe a bola no chão com a frieza de um assassino e da vida a jogada. Já leram o “Cadernos Negros 8”? Tem dois contos que vou te contar, “O Dia de Fuga”, que numa sacada monstra, sumaria uma de liberdade/prisão, Negritude/natureza… “Era estranho haver ali um fruto mas como nossa Deusa é capaz de muitos milagres, nem pedi licença a minha amiga e fui provar do sabor. Ali estava um ardil do predador. O peso do meu corpo fez com que a armadilha desabasse…”. O outro texto do José Carlos Limeira, nesta antologia é o “Bons tempos”, um mulecote na rua da vida: gíria, quebrada, Capoeira de Mestre Bimba, e o menino junto com os filhos do barão treinava só que a tarde era a malandragem no Maciel, que não se aprendia na academia… “Dete na esquina viu o menino galinho e disse — Vem cá— Estou sem dinheiro. — Gostei de você. —Eu também. —Amanhã você paga..” Que conto sagaz, assim como no “Esporte Clube Coração Saudoso”, o nome Dete aparece de novo, gosto desses diálogos, e os três contos apresentados, remete a minha vivência de homem negro, a relação com futebol varzeano, essas tantas tentativas de nos aprisionar e esses Bons tempos que dialoga com a a peça “Farinha com Açúcar ou Sobre Sustança de Meninos Homens”, dramaturgia do meu parça Jé Oliveira do Coletivo Negro, espetáculo que investiga a construção da masculinidade negra periférica. Por isso chamo o Limeira de Meiota, aquele que sabe fazer com um jogo adverso, e mesmo com essa seleção feia com a cara do Dunga, sem o prazer do futebol, sem aquelas jogadas criativas, que se aprende na rua, uma seleção que nada tem a ver com Brasil. Assim como no campo da literatura, ainda nos empunham o massacre psicológico eurocêntrico na sua sutilidade através da escrita, nessa nação de todos nós, Limeira é o meia do nosso time contra o time da deselegância puxando o contra-ataque, fica firme em minha memória seu “um dois”, com a poesia, não foi assim quando a chuva fazia enchente no meu eu no fim da década de 90 a sua escrita aliviou meu desespero! O poema “Quilombo” que eu li na “Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira” foi telhado, salvando o coração afogado de não todo, decorei esse texto e até hoje declamo nos saraus, e o poema Quilombo é musica pros olhos de quem ler: “Por menos que conte a história/Não te esqueço meu povo/Se Palmares não vive mais/Faremos Palmares de novo.” Mas chapo mesmo nesses versos: “Quilombos/ meus sonhos/sofro de uma insônia eterna de viver você. Vivo da certeza/ de renascê-los/ amanhã(…)” E quando conheci Limeira no lançamento do “Cadernos Negros 25”, foi pra mim uma emoção muito forte, pois já vinha garimpando os sebos de livros e encontrei o “Arco-íris Negro” e “Atabaques” ambos em parceria com Éle Semog, no “Arco-íris Negro” destaco o poema A Solano Trindade: “Hoje li de você/ que meu filho não será/ O escravo que hoje sou (…)” No “Atabaques” veremos ver essa força da negritude em seus versos, mas o que me pega mesmo são os vários poemas dedicados à mulher negra Como o poema “Negra II”: “Por haveres sofrido comigo/ mais que eu/ quero ser cúmplice/fiel(…)” Ou o poema “Não Perdem Por Esperar”: “Um dia/ela vai descer do palco/jogar a sandália no canto/ e olhar nos próprios olhos no espelho(…)” Limeira participou das edições dos “Cadernos Negros3 e 4 (1980 e 1981) 6,7 e 8 (1983,1984 e 1985), “Melhores Contos” (1998) 23 (2000)e 25 (2002) e na bonita Coletânea Poética “Ogum’s Toques Negros” e os versos do poema “Foi sábado”, assim como em outros poemas sempre presente sua Salvador terra que o poeta viveu e dedicou alguns poemas, nesse por exemplo depois da reunião, sai no rolê, “vai andando pela cidade/Depois do pastel do China/ E o Sorriso de duas meninas/Vi a praça do poeta/Fiz retrato da baía/ comprei uma sandália de couro/na descida da Barroquinha(…)”. Mas a jogada que me encanta é o disco que Limeira gravou, “Noite da Liberdade”, que voz do Meiota, poemas feito: “Águas do Paraguassu”, “Traços”, “Outro Para Exu”. São lances inesquecíveis, que marcam meu coração em chama já que a covarde violência cotidiana, não me afogou, com suas enxurradas de racismo.

Estávamos na mesa de bar bebericando e rememorando os poemas do José Carlos Limeira, quando meu parça Junior me pediu pra fazer um texto, fiquei em choque, mas achei importante contribuir na humildade sem maldade, com a poesia de Limeira, que assim como a sua geração de escritores Negras e Negros, me ensinam a enfrentar melhor esse inverno que tentar congelar o peito “Saudades das tuas noites/fogueiras que eu não vivi/Palmares Estado Negro…/ (vivo pensando em ti)…” e o Meiota Limeira não pode ser silenciado jamais no jogo das palavras e nesse campo que é a página sinta o prazer da leitura navegue na escrita e deixe-o vivo na literatura, e o Meiota em sua ginga firme e cadenciada mandou avisá:

Meu leitor

Eu me recuso a morrer no próximo verso,

seria de uma inutilidade total

deixaria um poema inacabado

e frustraria o leitor

que mora dentro de cada autor

por condição, extremamente curioso

Ele espera o fim da criação

poema,

conto,

com uma ansiedade tão profunda

que me atropela,

apressa

e cobra inclusive

minha sobrevivência,

até o ultimo verso

ultimo parágrafo

ou justo

até receber

da mulher amada

um beijo de sobremesa!

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