Disciplina e Cuidado: A galinha que pisoteia os filhotes mas não os mata

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    Foto: Marcelo Rocha

    Faz um tempo que quero falar sobre a sabedoria da África Ocidental, mais especificamente dos símbolos Adinkra e seus significados, mas é tanta coisa que nos enriquece que não caberia em um artigo ou um texto só, talvez quem sabe um dia possa fazer uma série sobre. Com certeza você já viu algum desses símbolos por ai em estampas, em identidades visuais, etc. Entretanto, seu significado é pouco conhecido pois são dezenas de símbolos e mais uma vez nossa história tem um deficit até chegar em nós.

    Conheci os símbolos e filosofia logo que começamos a pensar o coletivo negro secundarista e enquanto pesquisava eu tive de cara um apreço especial por um desses que se chama AKOKO NAN, ou melhor “Akoko nan tiaba na enkum ba”, que se traduz como: “À galinha pisoteia seus filhotes, mas não os mata.”

    O símbolo Adinkra que representa AKOKO NAN é semelhante a um pé de galinha e vem trazer a sabedoria do cuidado e da disciplina. Temos uma grande dificuldade quando se trata desse tema pois ficamos presos a dois extremos, de um lado irmãos que passam a mão na cabeça de tudo que o outro preto faz pelo simples fato de não querer ser mais um pisoteando um irmão e no outro lado alguns que pisam sem dor nos irmãos sem medir a mão ou as consequências dos fatos, matando muitas vezes aqueles que o cercam, sendo “juiz da militância” alheia.

    E o que a sabedoria vem nos trazer é o simples equilíbrio, a dosagem da mão sobre a disciplina daqueles nos cercam. Saber que cada irmão é único e que devem ser corrigidos e cuidado por nós mas sabendo admoestar. Vi essa semana o caso de um jovem negro que vem reincidindo em atitudes erradas mas todos pretos próximos passam a mão em sua cabeça por ser jovem e levado. A grande questão é que se a galinha não pisa em seus filhotes no seu terreiro, alguém vai pisar lá fora e muitas vezes vai ser os próprios papalagui. Temos esclarecido muito com nossos irmãos, deixando que fiquem sem disciplina dentro do próprio movimento, a idéia de autonomia e auto organização que sempre seguiu o movimentos vem sido confundida com libertinagem. Em seu livro “DICHAVANDO O PODER – Drogas e Autonomia”, o coletivo DAR traz um princípio que muito me marcou e levo por onde passo, onde um coletivo deve planejar suas atividades entre formação e inconformação, formação entre nós, para que pudéssemos sair e gritar nossas inconformações nos protestos, críticas, vídeos e etc. Isso vai consolidar o militante.

    Da mesma forma, as cobranças exageradas tem retirados muitos da militância por chegar e ter que ser o “militantezão da porra”, herdando do catecismo católico muito na nossa militância e cobrando a “santidade” na militância sem olhar pras fragilidades ou o círculo social a qual nossos irmãos e irmãs vieram. A questão racial nunca foi fácil no nosso país, eu mesmo me descobri negro quando tinha 18 anos, por estar junto de outros pretxs na militância estudantil e salvo que logo de cara me ensinaram a buscar conhecimento, a nossa ancestralidade, referências, e mesmo assim até hoje erro e aprendo muito.

    Além disso, apesar da Lei 10.639 garantir que o ensino público venha abordar as questões de África na escola, sabemos que são pouquíssimos espaços onde as questões raciais são abordadas no ensino básico. Crescemos achando normal várias atitudes e ninguém tem a obrigação de ensinar, mas pode ter o cuidado de ensinar. Até porque se não cuidamos e damos afeto aos nossos quem vai dar ? Mas, saber ensinar é ouvir, ter uma troca com nossos irmãos sem deixar que esse fique impune mas sem reproduzir o tratamento da branquitude para conosco. Todos temos algo a ensinar e aprender, tirar nossos irmãos do erro é um compromisso que devemos ter de cuidado com o outro, e mesmo que não haja resultado a princípio, existiu a oportunidade do conhecimento que um dia nos foi retirado.

    Que a filosofia ubuntu não esteja somente nas nossas tatuagens, status ou capas de Facebook, mas que possamos ser porque nós somos como coletivo, porque realmente nos admoestamos e crescemos juntos.

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