E a música de protesto, cadê?

    0
    712


    “O Hip Hop faz emergir uma voz que nasce dentro de uma cultura não só de resistência mas de existência. O existir dessa voz, sua popularidade e alastramento por todas as periferias e centros urbanos do mundo é a prova da possibilidade que o homem tem de se reinventar. Uma prova concreta de que depois das bombas e do nazismo, ao contrário do que já foi exaustivamente proferido, o projeto humano não está falido, simplesmente pela capacidade de renascimento que ta implícita na sua condição, e pelo fato de existirem vozes que levantam das ruínas e dizem: eu sobrevivi, estou aqui, sou humano e acredito. Não vou morrer, nem desaparecer: vou celebrar.”

    (Roberta Estrela D’Alva no livro “Teatro Hip Hop”)

    ___________________

    A música e a luta política caminham juntas há um bom tempo. Seja com o Sam Cooke e a Nina Simone inspirando a luta por direitos civis nos EUA; seja com Chico Buarque e Nara Leão inspirando a luta contra a ditadura no Brasil; seja com o Racionais MCs denunciando a violência policial já nos anos 90 na Zona Sul.

    Os quatro elementos do Hip Hop representam o existir e resistir. Uma coisa colada na outra.

    Ainda assim, por vários lugares por onde passo — inclusive nas salas da faculdade — já cansei de ouvir que a música de resistência morreu com a MPB dos tempos da ditadura ou que no máximo os resquícios dela duraram só até 1997 com o “Sobrevivendo no Inferno” do Racionais MC’s. Dizem esses entendedores, que o “Rap de verdade” foi morrendo com as novas gerações.

    Nos meus anos de escola me lembro de ter visto quase nada sobre Rap (assim como também não vi quase nada sobre outras musicalidades negras).
    Também quase não estudei nada sobre o Hip Hop na faculdade de História, ainda que ele seja um elemento essencial para entender a história dos EUA, por exemplo.

    Por isso eu pensei em criar essa lista com músicas e artistas recentes do Rap(uns mais, outros menos). A maioria nacional, alguns internacionais. Pra que quem educa, não deixe de considerar que já tem conhecimento sendo produzido nas margens. Se a escola cair, continuaremos ensinando e aprendendo nas nossas rodas.

    Quem diz que não há resistência no Rap atual é porque realmente não conhece nada.

    Fanon pensa raça mas o Djonga também. Marx critica o capitalismo mas o Rodrigo Ogi também. Angela Davis reflete sobre gênero mas a Rap Plus Size também e por aí vai. Uns são tão importantes quanto o outro.

    Então essa lista é principalmente pra quem é educador, professor, etc. e insiste que a nova geração tá perdida. Saiba aí que tem muitos e muitas MC’s botando pra foder com as estruturas sociais. Essa lista é bem resumida, só com algumas sugestões mas tem muito (muito mesmo) mais gente fazendo som pesado, é só abrir os olhos e a mente.

     

    Fudendo o Eixo Rio — SP e a xenofobia

    Sabemos que em tudo: mídia, investimentos econômicos e inclusive no Rap existe uma sub-representação do Norte e Nordeste para que haja um domínio do sudeste, especialmente do eixo Rio-São Paulo. Só que tem uma galera fudendo com esse domínio seja denunciando a xenofobia, seja simplesmente existindo na cena:

    1. Lady Laay

    “Pois o medo ainda é a maior arma do opressor.”

    A rapper natural do Recife (PE) traz nas suas letras várias denúncias e a afirmação enquanto nordestina numa cena xenofóbica (e também como mulher numa cena machista).

    Nesse som ela critica o atual Governo Temer que não deixa de ser um representante dos inimigos do Nordeste.

     

     

    2. RAPadura

    “Meto o norte nordeste o povo no topo dos festivais, toma!”

    O próprio nome desse rapper de fortaleza já é uma afronta: rapadura é um doce típico do nordeste brasileiro. O prefixo é o mesmo: rap-adura. E ritmo e poesia também já existia no repente. São várias as músicas em que ele traz esse tema. Destaco só uma, mais direta impossível.

     

    3. Chinaski

    “Nunca invejei ninguém, na verdade ataquei a estrutura.”

    Diomedes Chinaski, de Pernambuco, além de colocar na sua música várias temáticas psicológicas e existenciais, também reafirma a cena nordestina seja nas letras, seja no sotaque. Participou dessa cypher ao lado de outros rappers nordestinos:

     

    Fudendo o o machismo

    A sociedade é machista, sabemos. O Rap tá dentro dessa sociedade e não poderia deixar de reproduzir (e recriar) várias idéias e práticas machistas. Só que se por um lado ele pode perpetuar, tem várias minas fudendo com o patriarcado e a misoginia, inclusive enfrentando o machismo de outros rappers. Várias minas mesmo, seguem algumas:

    1. Rap Plus Size

    “É melhor a partir de agora cês começar a respeitar as mulher!”

    A dupla paulista, formada por Issa Paz e Sara Donato, lançou um álbum com o mesmo nome do grupo. Além de mulheres ambas são gordas (por isso o nome Plus Size) e nas suas letras, dentre várias outras coisas, denunciam o machismo e a gordofobia.

     

    2. Drik Barbosa

    “Feminismo das preta bate forte, mó treta. Tanto que hoje cês vão sair com medo de bu****”

    A rapper já tá na cena há um tempo. Tem várias canções de amor inclusive. Só que muitos só a conheceram depois que ela estourou participando da música Mandume do álbum do Emicida. Foi a única mina no som e representou.

     

    3. Livia Cruz

    “Eles cobram postura sem disciplina, sempre pesando na ideia das mina.”

    Também na cena há um tempo, a “Titia Livia”, que é do Recife (PE), é um soco na estrutura machista em várias músicas como “Ordem na classe” e “Eu tava lá”.

    Participou dessa cypher ao lado de outras minas da cena.

    Fudendo a LGBTfobia

    LGBTfobia é o ódio as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transsexuais (e outros/as que fogem as normas de gênero e sexualidade). Assim como o machismo, o Rap também reforça isso muitas vezes. Mas cada vez mais várias pessoas tem colocado essa pauta na cena. Como música negra que é não poderia fazer diferente: criticar a colonização é também criticar as regras que ela impôs aos corpos e que são muito mais cruéis pra quem é preto e pobre.

    1. Rico Dalasam

    “Negros, gays, rappers, quantos no brasil?”

    O rapper paulista, que é gay, resiste só de compor (e cantar e dançar) em meio a uma cena homofóbica. O tema não deixa de ser recorrente nas suas letras. Essa música faz parte do seu álbum Orgunga (que significa Orgulho Negro e Gay).

     

    2. Luana Hansen

    “Eu sou a puta, a trepadeira, a vadia. Eu já tava lá enquanto você se escondia!”

    A rapper que é lésbica, feminista e militante tem sempre em suas letras o tema da liberdade (sexual, social, política…) das mulheres e em especial das negras e lésbicas. Arrebenta. Participou dessa Cypher recentemente. Mas tem outros sons pesados como “Ventre livre de fato” e “Flor de mulher”.

    Além disso ela tem uma versão para o funk “Me Deu Onda” chamada “Minha Xota te Ama.”

     

     

    3. Frank Ocean

    “I see both sides like Chanel”

    O rapper, americano, bastante (re)conhecido, é bissexual. Suas letras tratam de vários temas. Algumas trazem os vários dramas de existir num corpo de homem negro (e sua relação com a fama e o dinheiro).

    Mas o que predomina são as românticas e costumam variar: as vezes fala de um homem, as vezes de uma mulher. “Chanel” talvez seja o som mais aberto sobre o tema, dentre as referências a sua sexualidade está o próprio refrão onde ele diz que “vê ambos os lados como Chanel” (em referência a estilista Chanel que também seria bissexual).

     

     

    4. Linn da Quebrada

    “Que eu sou uma bicha, louca, preta, favelada. Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada.”

    A MC, que é trans, negra e da periferia de São Paulo não necessariamente se encaixa na categoria de Rap. Mas não deixa de passar por esse estilo, bem como pelo funk.

    Não é só na música que ela transgride, como a mesma afirma, seu corpo é revolucionário. Com suas letras não é diferente.

     

     

    Fudendo o Racismo

    Ainda que hoje haja uma discussão sobre o destaque de rappers brancos e o apagamento de rappers negros, o Hip Hop é preto. Surgiu da organização de negros, latinos e brancos pobres nos guetos. Apesar do mito da “democracia racial” no Brasil reforçar a mentira de que “somos todos iguais” e de que o racismo seria coisa do passado, não é o que acontece na prática: discriminação nos espaços ainda brancos como shoppings e universidades; perseguição policial; mortalidade de mulheres negras e o índice de encarceramento estão aí nos mostrando que o racismo continua no Brasil miscigenado. O Rap continua alertando e combatendo.

    1. Emicida

    “Nossas crianças sonha que quando crescer vai ter cabelo liso.”

    O rapper, que já tá há bastante tempo na cena, com vários álbuns e EPs lançados, tem a temática racial como uma constante nas suas obras. Seja através da denúncia, seja através da celebração dos nossos avanços e da nossa re-existência.

    Desde os tempos de batalha, até o seu último álbum, em músicas como “Casa”, “Boa Esperança”, “Yasuke” e “Bang” ele traz diversas referências africanas e relaciona com o contexto dos pretos daqui que estão, sobretudo, nas quebradas. A música “Cê lá faz ideia” não é das suas mais atuais mas o que ele diz com certeza foi vivido hoje mesmo por alguma pessoa negra do país.

    2. Yzalu

    “Foi eu que cresci e ouvi que preto não tem vez.”

    A rapper é uma afronta ao machismo, o racismo e a exclusão de pessoas com mobilidade reduzida. Usa voz e violão e faz vários paralelos entre a MPB e o Rap. Autora de músicas como “Alma Negra” e o “É o rap tio”.

    A música “Mulheres Negras”, que lhe foi dada pelo Eduardo (ex Faccção Central), é um clássico na sua voz e é um denúncia do feminícidio negro.

    3. Djonga

    “Na chamada a professora diz “Pantera Negra”. Eu respondo: presente.”

    Polêmico, nas suas letras e na sua postura, arrebenta sempre que lança um novo som. Na maioria ele sempre traz a denúncia de quem sente na pele o que é ser um homem preto no país que mata e encarcera jovens negros aos montes.

     

     

    Fudendo o sistema capitalista e a desigualdade social

    O sistema capitalista — esse modo de produção e consumo adotado pela humanidade há alguns séculos — segue explorando e matando pessoas pobres e trabalhadoras. Ainda que o Rap tenha cada vez mais alcançado espaço no mercado, vários tão denunciando que este sistema deve ser destruído.

    1. Rodrigo Ogi

    “Disseram que o trabalho faz enobrecer. Trabalho mais que o meu patrão e nem sou sócio.”

    O rapper, que é o cronista da cidade cinza, não é nada novo na cena. Rima desde 1994 mas só em 2003 retornou com força ao Rap. Também é pixador.

    Suas letras são sempre bem críticas. As vezes são angustiantes: como é a cabeça de quem sobrevive nessa cidade cinza. “Corrida de ratos” é um bom retrato do modo de funcionamento capitalista.

    2. Kendrick Lamar

    “Thought money would change you. Made you more complacent.”

    Bastante famoso nos EUA e fora de lá, o Kendrick Lamar alcançou status e fama. Representa um negro que talvez tivesse acessado o tão maravilhoso “sonho americano”.

    Mas suas letras são justamente uma denúncia disso: o sonho americano é pesadelo pra quem é negro e se constrói a partir do pesadelo de milhões de pretos mantidos na pobreza. Seus álbuns, como “DAMN” e “To Pimp a Butterfly”, retratam as várias angústias de sobreviver nesse (e apesar desse) sistema.

    3. Sant

    “Teu sofrimento não é nada comparado ao que você herda”

    O rapper, nascido em 1994 no Rio de Janeiro, faz parte do selo #VVAR (do MC Marechal). Suas letras são contundentes e denunciam as questões sociais, os dramas familiares e as tretas psicológicas de quem sobrevive no inferno.

    Fudendo a Intolerância Religiosa

    O Brasil, apesar de miscigenado e com diversas religiões, ainda exclui e persegue as religiões não-cristãs sobretudo as de matriz africana como o Candomblé e a Umbanda. Esse tema também aparece no Rap Nacional.

    1. Baco Exu do Blues

    “Jesus voltou: é o Hip Hop, uma mulher preta.”

    O próprio nome do rapper baiano já faz referência a religiosidade: Baco (Dionisio) é um deus da mitologia greco-romana, ligado ao vinho e ao sexo. Exu é um orixá africano, presente no Candomblé e na Umbanda, é quem abre os caminhos.

    Na música culto — bem como em outras como “Faixa Preta” e “En Tu Mira” — ele traz várias referências a religião. Seja ao cristianismo, seja a mitologia grega, seja o candomblé. E faz paralelos entre isso e a realidade do preto brasileiro.

    2. Mano Réu

    “Quem é o incrédulo que trouxe a discórdia?”

    O rapper, da Brasilândia (Zona Norte) de São Paulo, tem a temática do Candomblé em músicas como “Ogum vem Armado” que, de acordo com ele, fala de “África, dos heróis negros brasileiros e também da nossa missão que é uma sociedade justa e livre.”

    No clipe de “O Vento de Caymmi” ele traz várias referências à religiosidade afro-brasileira.

     

     

    3. Amiri

    Amiri é um rapper paulista, oriundo das Batalhas de MCs, que compõe sobre racismo, depressão, drogas e mais um monte de coisa, inclusive: religião.

    Na música “Ayo” (que significa Alegria em Yorubá) ele fala do Amor Universal, algo acima de nós e capaz de nos conectar e curar. Protesto não só faz só de denúncia mas também de anuncio. Essa letra anuncia.

     

    Continua…

    ________

    Fonte: Medium – Igorgomes_chico

    LEAVE A REPLY

    Please enter your comment!
    Please enter your name here