A Megalomania e o Estado de Exceção

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    O Brasil é um Estado de exceção! É isto mesmo: não ESTÁ! É! Explico: todas as regras de bom senso que deveriam reger as sociedades civilizadas, aqui são subvertidas. Dizer que estamos vivendo em um estado de exceção soa até ingênuo, pois mesmo nos melhores momentos da vida política, tudo aqui soa absurdo e ilógico. O estado brasileiro vive mergulhado na exceção.

    Essa reflexão me veio devido ao debate acerca do conceito de “apropriação cultural” iniciado por uma jovem que, enquanto aguardava o transporte público, sentiu-se agredida por olhares de mulheres negras (que segundo ela, eram todas lindas) e, por fim, pela abordagem de uma dessas mulheres, dizendo-lhe que “não deveria usar turbante porque” ela “era branca”[1].

    Quem conhece a realidade brasileira sabe que, aqui, nenhuma abordagem a estranhos é segura, pois a população daqui não admite ser repreendida, nem mesmo se for vista jogando lixo na rua a um metro de um recipiente apropriado para esta finalidade, ou estacionando em uma vaga reservada para pessoas com necessidades especiais. E o receio é justificável, já que, quebrar este tabu pode significar ser agredido fisicamente, ou ser alvo de um escândalo em praça pública.

    Thauane Cordeiro alegou estar usando o turbante por ter perdido os cabelos devido aos efeitos colaterais de um tratamento médico. É com essa informação que ela argumenta, dando a entender que, só isto já deveria ser o suficiente para que qualquer pessoa compreendesse sua “necessidade” de usá-lo. – “Tá (Sic) vendo essa careca, isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero! Adeus.”

    Sua hashtag  #VaiTerTodosDeTurbanteSimviralizou, alavancando consigo um pseudo debate sobre o conceito de Apropriação Cultural. Recebeu algumas dezenas de milhares de curtidas, elogios e palavras de incentivo e, em contrapartida, uma quantidade semelhante de críticas, ofensas e palavras de ordem.

    Não vou cair no que considero uma armadilha intelectual: discutir apropriação cultural. Há muita gente mais preparada e disposta a fazer isto, como Ana Maria Gonçalves, que em seu admirável artigo[2], desfaz qualquer confusão que o debate, se tivesse sido levado a sério, jamais teria gerado. Vou ater-me a outros fatos relevantes, que passaram despercebidos:

    – Toda sociedade carrega uma história, que envolve a totalidade de seus cidadãos. Na história das sociedades ocidentais, mais especificamente, na brasileira, sempre coube ao negro, o papel de ser abordado para receber alguma negativa. Para citar apenas um exemplo, lembro o episódio em que a então ministra recém-nomeada para a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no país, portanto, para combater o preconceito e discriminação, ter sido interpelada, na entrada de um restaurante, por sua cor, só podendo entrar após um assessor, branco, tê-la identificado; talvez por isso, o brasileiro comum tenha tanta resistência a ser abordado para qualquer mensagem corretiva de suas ações: isto remete à condição do negro!

    – Em sua postagem, Thauane refere-se aos olhares “tortos” das “belíssimas” mulheres negras e, o incômodo gerado por esses olhares. Curiosamente, a única explicação plausível é o fato de ela estar usando turbante; fica impossível não extrair desta cena uma reflexão simplória, já que ela sentiu-se discriminada por estar usando o acessório (por sinal, é importante lembrar que existem inúmeras opções acessíveis para o turbante). Sendo apenas um acessório, pode ser substituído. Diferente da condição das pessoas vítimas do preconceito racial, cuja condição é a cor de pele, a textura do cabelo e outras características biológicas e, portanto, indisfarçáveis.

    – Ao justificar o uso do turbante, ela exibe a cabeça calva, explica o motivo da calvície e conclui afirmando que pode usar o que quiser; chega a ser preocupante a pessoa afirmar que, por ser vítima de uma doença horrível, sinta-se no direito de agir sem levar em consideração o restante das pessoas, como se sua condição permitisse absolutamente tudo. Eu fico tentado a associar essa conduta a uma megalomania compulsória, mas compreendo essa reação, afinal, a discriminação dói.

    Como qualquer pessoa com traços associados às etnias negras, eu entendo com clareza essa dor, causada por uma intervenção mal educada para me corrigir por alguma atitude que eu não reconheço como errada.   Como qualquer cidadã(o) que estaria destituído de alma, dignidade e liberdade, se fosse há 150 anos, eu respeito a dor de alguém que sofreu olhares “tortos” em um ambiente público ou privado. Como qualquer ser vivo que experimenta constantemente a triste sensação de estar sendo observado em cada gesto e movimento por onde ande, não se sentindo bem vindo em quase nenhum lugar, eu percebo a angústia decorrente do episódio em questão.

    Lembrei-me dia desses, de Blue Eyed[3], documentário sobre o trabalho desenvolvido por Jane Elliot, nos EUA. Mais especificamente, do trecho em que a platéia é questionada sobre quem gostaria de receber o mesmo tratamento dispensado às pessoas de pele negra. Ao receber um silêncio retumbante como resposta, ela justifica sua pergunta afirmando que, se ninguém gostaria de viver esta experiência, era porque todos tinham consciência de como a população negra é tratada.

    Infelizmente, Thauane Cordeiro sentiu na pele os efeitos devastadores do preconceito, justo em um momento delicadíssimo. Fragilizada por uma doença terrível e pelos efeitos colaterais do tratamento médico. Infelizmente, sentiu na pele a dor dos outros, da população de pele escura, ou traços típicos de afrodescendentes. Aqui no Brasil, a regra é o branco repreender e agredir o negro – fisicamente, verbalmente ou socialmente – e nossa jovem viveu minutos de exceção: foi lembrada que vivemos em um Estado de Exceção.

     

    Monahyr Campos

    [1]https://www.facebook.com/thaaune/posts/1929800557240170

    [2]https://theintercept.com/2017/02/15/na-polemica-sobre-turbantes-e-a-branquitude-que-nao-quer-assumir-seu-racismo/

    [3]https://www.youtube.com/watch?v=In55v3NWHv4

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