Nichelle Nichols: Poder Feminino Através de Star Trek

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Seu nome não é somente conhecido pelos nerds, Nichelle Nichols é uma lenda da TV e do cinema graças ao seu papel na franquia Star Trek (Jornada nas Estrelas), como Chefe de Comunicações da USS Enterprise, Tenente Nyota Uhura.

Ela é atriz, cantora, dançarina, ativista e a mulher preta que influenciou milhares de pessoas, indo muito além do espaço e tempo, na verdade, indo onde nenhuma mulher preta jamais havia ido.

Introduzindo Jornada nas Estrelas (Star Trek)

Star Trek (Jornada nas Estrelas) é uma famosa série americana de ficção científica criada por Gene Roddenberry em 1966. A séria clássica (original) foi televisionada no Brasil nas décadas de 70, 80 e 90 na TV aberta.

Dia 08/09/2016 a série de fez 50 anos, e para comemorar acredito ser importante falar da série e da matriarca negra da TV, Nichelle Nichols.

A série nunca reproduziu estereótipos negativos, levando a sério o conceito de diversidade, porém sempre problematizando e extrapolando até o universo nossos conflitos sociais, religiosos, políticos e raciais, exercitando nossa imaginação através da fantasia espacial, nos inserindo em novos mundos, mas sempre mantendo e questionando nosso senso de moralidade.

Devido a essa característica disruptiva, a série se transformou em uma das maiores e mais importantes franquias da história, e é neste cenário inovador, até para a própria ficção científica, que foi introduzida ao mundo a atriz Nichelle Nicholls, no papel de Tenente Nyota Uhura.

Quem é Nichelle Nichols?

Tendo como nome de batismo Grace Nichols, essa mulher preta americana de Illinois, já aos 5 anos de idade começou a cantar e dançar para seus familiares. Aos 14 anos já se apresentava profissionalmente como cantora e dançarina na cidade de Chicago.

Não demorou muito para ser descoberta pelo mestre do jazz, Duke Ellington, que a contratou como bailarina, mas graças ao seu talento, ao fim da turnê ela já havia se tornado vocalista principal da trupe musical, além de passar a usar Nichelle Nichols como seu nome artístico.

Trabalhou em diversas peças e musicais em Nova York, Chicago, Los Angeles. Com a banda do músico de Jazz Lionel Hampton fez shows por EUA e Europa. Depois desse período recebeu convites para cantar na Broadway, mas acabou aceitando o convite do produtor Gene Roddenberry para fazer parte da nova série de TV chamada Star Trek.

Essa decisão mudaria sua vida e a cara da TV para sempre.

Contextualizando Uma Época

No ano de nascimento de Star Trek, a luta pelos direitos civis americanos alcançava o ápice de seus conflitos. O Free Jazz, já rompido com a estrutura musical do próprio jazz, mas era o tema das lutas pelos direitos civis. As big bands já haviam embranquecido e virado bandas de rock and roll elétrico.

A guerra do Vietnã assassinava milhares jovens americanos todos os dias do outro lado do mundo, enquanto os patriotas brancos americanos linchavam e assassinavam jovens negros em seus quintais. Nas ruas os gritos de paz e amor dos hippies ecoavam destoantes e sectários à independente voz de comando do recém-nascido Partido dos Panteras Negras.

As igrejas bebiam no soul para fazerem suas preces através do gospel music, enquanto a recém-nascida funk music levava a dança e o “pecado” para os guetos. Os ônibus, bares, hotéis, restaurantes e ainda conservavam suas placas com os dizeres “White Only” (somente brancos) nas suas entradas. Dr. Martin Luther King Jr. marchava com suas multidões pacificamente, enquanto Elijah Muhammad acendia a Nação Islã nos guetos através da retórica incisiva de Malcom-X.

A opinião pública era corrompida, racista, machista e partidária em sua grande maioria, os conflitos eram violentos e diversos. Ser um jovem preto oscilava entre a morte certa na mão de um homem branco de meia idade, ou a submissão ao novo modelo de escravidão moderna imposta pelo mesmo assassino.

Em síntese, os EUA sempre foi uma nação corroída pelo ódio racial explícito, e é neste cenário que nascia a série Star Trek, pregando a paz e a diversidade entre os povos diversos. Mais importante que isso, para nós, pessoas de pele preta sequestradas de África, nascia junto com a série a imponente Tenente Nyota Uhura, a quarta em comando da nave USS Enterprise.

Quem é Tenente Uhura?

A personagem Tenente Nyota Uhura era a oficial de Comunicações da nave USS Enterprise. Ela nasceu nos Estados Unidos da África e seu nome significa “liberdade” em idioma swahili (na verdade se escreve uhuru).

Formada em matemática e física, a tenente romperia com o estereótipo de representar mulheres pretas somente como escravas ou empregadas. A personagem não usava de subterfúgios sexuais, nem tampouco se mostrava como inútil ou burra, qualidades comumente atribuídas às personagens femininas da época.

Todos esses rompimentos e a fama da personagem, fizeram com que ela fosse protagonista de uma das maiores quebras de tabu vista em rede nacional americana, em pleno conflito pelos direitos civis americanos no ano de 1968, ela foi responsável pelo primeiro beijo interracial da história da Televisão.

Em um dos capítulos a personagem, Tenente Uhura (Nichelle Nichols) beijou a boca do galã da série, Capitão Kirk (William Shatner). Imaginem o alvoroço criado após todos verem uma mulher preta escolhendo beijar um homem branco em uma relação não forçada e não abusiva em rede nacional. Definitivamente algo além da imaginação em uma sociedade abertamente racista e machista.

Ainda hoje esse tipo de beijo, concebido de forma digna, seria problemático em emissoras conhecidas no Brasil, cinquenta anos depois o racismo é tão latente quanto foi no passado.

A Influência de Dr. Martin Luther King Jr.

Próximo ao fim da primeira temporada a atriz Nichelle Nichols decidiu que iria deixar a série Star Trek.  Ela então informou o diretor Gene Roddenberry de sua decisão, que pediu que ela pensasse com calma e só o respondesse após o final de semana que estava por vir.

Neste mesmo fim de semana ela foi a um jantar onde estavam várias personalidades da época. Dado momento um garçom disse que havia uma pessoa que queria muito seu autógrafo, e que essa pessoa se dizia seu maior fã.

Nichelle Nichols se levantou e caminhou seguindo o garçom ao encontro do fã, no caminho, ao longe, viu a figura sorridente de Dr. Martin Luther King e pensou: “Esse fã há de me desculpar, mas vou falar primeiro com meu líder, Dr. King”.

Dr. King a recebeu com seu típico sorriso e disse: “Pela sua cara você não imaginava que eu assistia seu programa. Madame Nicholls, sou seu maior fã e meus filhos não perdem um capítulo do seu programa”.

Nichelle contou que sairia do show, seco e direto Dr. King disse: “Você não pode fazer isso”!

Martin Luther King mostrou para Nichelle Nichols que o poder de influência de seu personagem ia além da série, que ela era inspiração para outros jovens negros, uma liderança negra usando todo o alcance massivo da televisão. Felizmente ele a convenceu.

Anos depois em uma entrevista ela “se lamentou”, dizendo que Dr. King e Star Trek acabaram com seu sonho e sua chance de virar uma famosa cantora da Broadway, mas que não havia arrependimentos, porque ela nunca subestimou o poder da Televisão.

Gene Roddenberry, quando ouviu o caso ocorrido com Dr. King, Gene ficou atônito por cerca de cinco minutos e quando quebrou o silêncio disse a frase que ficaria famosa: “Deus abençoe Dr. Martin Luther king! Alguém está percebendo o que eu quero fazer”.

Star Trek e Nichelle Nicholls, mostraram que era possível romper com os padrões ocidentais de “establishment” até mesmo naquele conturbado momento. Foi possível desenvolver para além da fantasia a perspectiva que uma mulher negra seria capaz de liderar um novo modelo de futuro onde pessoas pretas estariam ocupando todos os espaços dignos da sociedade.

Empoderamento e Influência Real

Durante as gravações de Star Trek, Nichelle Nichols gravou pequenas participações em alguns filmes de Blaxploitation, “Doctor, You’ve Got to Be Kidding!” (1967) e “Truck Turner” (1974). Anos depois ela se posicionou abertamente contra o machismo imposto neste gênero de filme, passando a recusar papéis e pedindo que outras atrizes também o fizessem, até mesmo em filmes de seu amigo e grande cineasta, Gordon Parks.

Como cantora, Nichelle gravou três ótimos discos: “Out of This World” (1999); “Down to Earth” (1997); “Down To Earth + Bonus Tracks” (2008). Além de ter gravados faixas para alguns filmes e episódios de Star Trek. Eu poderia falar muito mais sobre sua carreira musical, mas logo farei um texto específico ou uma playlist de indicação.

nichelle-nichols Graças à sua popularidade em Star Trek, Nichelle Nichols foi voluntária em campanhas para alistamento de astronautas da NASA. Sua presença foi eficaz e importantíssima para a inclusão de “minorias” à agência espacial, que neste período passou a receber muitas inscrições de candidatos de origem negra, e também de mulheres.

Graças a presença de Nichelle Nichols nessa campanha publicitária, Guion Bluford se tornou o primeiro astronauta negro a ir para o espaço e Sally Ride foi a primeira mulher norte-americana a ir para o espaço. Judith Resnik e Ronald McNair também vindos dessa campanha, eram astronautas promissores, mas, infelizmente faleceram em um acidente durante o lançamento do ônibus espacial Challenger, no ano de 1986.

Outro caso icônico, é de uma garotinha preta que aos 9 anos de idade durante um episódio de Star Trek corria por sua casa gritando desesperadamente pelos pais. Ela queria mostrar a sua família que havia uma mulher negra comandando uma nave espacial na TV. Era a primeira vez que essa criança via uma mulher negra não fazendo papel de escrava ou empregada em um programa de TV. Essa criança era Whoopi Goldberg, que teve sua vida mudada pela presença de Nichelle Nichols.

Anos depois, durante as gravações da série Star Trek: The Next Generation, aproximadamente em 1988, Whoopi Goldberg ligou para o diretor Gene Roddenberry pedindo um papel na série. Ele disse que adoraria tê-la na série, mas que não teria orçamento para pagar uma comediante e atriz tão famosa, pois a série era pequena e tinha limitações de recurso.

Whoopi disse que receberia o quanto ele pudesse pagar e que faria qualquer papel na série, pelo simples desejo de estar na mesma série (franquia) que Nichelle Nichols, a mulher que mudou sua vida. Whoopi Goldberg fez o papel de Guinan, da raça El-Auriano, um povo de vida longa e muita sabedoria. Sua personagem era barman e conselheira de membros da tripulação da nave USS Enterprise. Sua participação era especial, porém importante e recorrente.

No ano de 1992 Nichelle Nichools, honrosa e merecidamente, foi condecorada com uma estrela na Calçada da Fama em Hollywood, sendo eternizada junto com os grandes do cinema e da TV.

Entendo que empoderamento feminino é o ato de conceder o poder de participação social às mulheres, garantindo que possam estar cientes sobre a luta pelos seus direitos, como a total igualdade entre os gêneros, por exemplo. Nichelle Nichols foi Matriarca Africana que sabendo quem era, pode influenciar de forma real e efetiva não somente as mulheres e homens de pele preta, ela foi capaz de promover igualdade dentro da diversidade e o empoderamento real.

A boa ficção científica antes de tudo trata da essência das questões humanas através de devaneios futuristas diversos. As rupturas e ranhuras causadas na estrutura social por Star Trek e por Nichelle Nichols são reais e efetivas e continuam reverberando.

Seus nomes não são conhecidos somente pelos nerds, Nichelle Nichols e Tenente Nyota Uhura são lendas reais que como Exú que trafegam entre o físico e o imaginário, são mulheres pretas com poder ancestral, são matriarcas africanas que não só estiveram onde nenhum Homem jamais havia ido, elas nos ensinaram o caminho para também chegarmos onde nenhum Homem já mais esteve, especialmente nós, filhos de África.

Vida Longa e Próspera à Nichelle Nichols!

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