Preto, branco e o vermelho da violência perpétua

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Spike Lee volta a ser aquela metralhadora de críticas que já estamos acostumados

Em o infiltrado na Klan, baseado no livro homônimo e em cartaz nas salas de cinema de São Paulo, Spike Lee volta a ser aquela metralhadora de críticas que já estamos acostumados ao longo dos seus mais de 39 anos de carreira e algo em torno de 80 trabalhos (entre longas, curtas, documentários, séries e afins), na obra, que retrata uma história real, a mira está apontada para o racismo estrutural, violência racial e sobra até algumas críticas para o movimento Panteras Negras.

Para colocar na tela o ‘herói’ Ron Stallworth (autor do livro), interpretado pelo ator John David Washington (filho de Denzel) Spike se inspira, e muito, no movimento cinematográfico Blaxploitation, muito popular principalmente entre a juventude preta dos anos 70 nos Estados Unidos. Desse movimento são os clássicos Shaft, Coffy, Cleópatra Jones, Super Fly, Black Samurai, entre outros, entre outros, esse último foi homenageado explicitamente quando o protagonista faz movimentos de artes marciais no meio de uma das cenas da película.

Blaxploitation foi responsável por colocar os pretos em lugar de destaque no cinema, o que não era comum. Os enredos quase sempre envolviam violência, marginalidade e rivalidade com a polícia ‘branca corrupta’. Os críticos usavam esses fatores para criticar o movimento, mas é inegável o valor histórico dele. Spike Lee sabe disso e de forma soberba utilizou esse recurso, em movimentos de câmeras, paletas de cores, figurino e até na trilha sonora, marca forte do movimento que tinha envolvido nas produções musicais nomes como Isaac Hayes, Marvin Gaye, Curtis Mayfield e outros feras.

Infiltrado na Klan tem fluidez, as cenas não cansam, passa longe de ser enfadonho, a acidez do diretor nos traz risos. Hora risos nervosos, hora gargalhadas. O tema é duro, forte, mas ele não erra a mão. O filme que se passa na década de 70 nos faz pensar o tempo todo na atualidade, uma sensação de espiral do tempo, o sarcasmo respinga em Donald Trump e em sua política segregacionista, resvala em fake news e outros temas em voga.

O elenco tá entrosado, atuações de destaque para John David Washington, Adam Driver e Laura Harrier, que no filme lembra muito uma jovem militante dos anos 70 que responde pelo nome de Angela Yvonne Davis.

Dentre todas as qualidades que chamam atenção em Infiltrado a que mais me chama atenção é o conhecimento do diretor Spike Lee sobre a sétima arte, como se não bastasse toda a aura blaxploitation criada por ele, e o enredo bem amarrado que ele e sua equipe criaram, tem as minúcias, os pequenos detalhes que dão margem a várias interpretações. Porém, há uma que me chamou mais atenção, vamos a ela.

Antes vou dar um pequeno salto pra traz, para a época das aulas na faculdade. Um professor de cinema, nascido na Colômbia, tinha as aulas concorridas por veteranos e calouros, seu nome era Fernando Salinas. Lembro-me dele falando em umas das aulas sobre as cores e suas funções dentro da narrativa, e, ainda, alguns códigos que os cineastas usavam pra indicar uma ação futura dentro do próprio filme.

O que mais me marcou foi o que ele disse em relação ao uso que alguns diretores adotavam sobre a cor vermelha e sua simbologia. Segundo ele, esses diretores utilizam elementos (figurino, adereços, cenários) vermelhos para indicar uma cena de morte se aproximando na trama e deu exemplos, todos bem convincentes.

Voltando ao Infiltrado na Klan, destaco duas cenas onde isso ocorre e uma de forma bem preocupante segundo minha própria análise. Sim, teremos spoilers agora.

A primeira passagem é quando Connie (Ashlei Atkinson) esposa de um dos integrantes da KKK carrega explosivos para a casa de Patrice, ela está com uma roupa toda vermelha e no final da cena, bingo, há uma morte. Spike Lee deixa óbvio que também usou o código ‘vermelho = morte’, a deixa estava dada.

A outra cena em questão é a última do filme, Ron e Patrice conversam, ele está com uma blusa de gola rolê vermelha e ela com uma espécie de bata com detalhes vermelhos. Ouvimos barulhos, ambos saem do quarto com armas em punho e olham pela janela, uma cruz está ardendo em chamas, marca da conhecida tentativa de intimidação da Kan. A seguir o filme passa para um tom documental, segue para os incidentes supremacistas em Charlloteville em Agosto de 2017, onde confrontos fizeram uma vítima fatal.

Mas, o que parece querer dizer o diretor com aquele código em aberto no fim é que vão continuar existindo mortes por ódio racial para além do cinema, este problema é real e que ele continuará nos assombrando por muitos anos.

O vermelho em Ron e Patrice e a quebra pra fatos reais é um alerta para nós pretos de que há perigo sim e de que somos o alvo principal dentro dessa estrutura social. Fomos, somos e continuaremos a ser as vítimas preferenciais da sociedade, num sistema de violência perpétua.

Spike Lee dá uma aula sobre estrutura de poder, racismo e, sobretudo, de cinema. A estrutura branca (não os indivíduos brancos) é movida por um combustível vermelho: o sangue preto, que ainda escorre em abundância.

André Santos é jornalista, ator e diretor do Coletivo Favela em Cena.

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