Sun Ra Arkestra: A Cosmologia do Universo Interior

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Sun Ra

                                                                                                          Sun Ra

Se existe uma particularidade positiva no jazz é o seu poder de alteração da realidade. Jazz é força motriz de uma realidade preta paralela que vive flertando constantemente com a “nossa” problemática realidade ocidental. Os trombones e trompetes usados para marchas militares francesas, nas mãos de afro-americanos vanguardistas, viraram portais para o infinito, abrindo novos caminhos para a “anormalidade” criativa de seres evoluídos oriundos de África. Anos depois os sintetizadores de Sun-Ra Arkestra abriram as portas da percepção para o cosmos, trazendo para nós terráqueos uma gama de novas perspectivas capitaneadas pelos alienígenas africanos de Saturno.

Seria incoerente apresentar o pianista formalmente como Herman Poole Blount, o correto sempre será, “Sun-Ra”, “Le Sony’r Ra” ou “Sonny Lee”, nomes e personalidades que usou após negar a identidade de escravizado, Herman, que segundo ele, nunca existiu.

Ainda Terráqueo?

Muitos anos antes dos astros do rock começarem a se preocupar com a temática espacial e a estética visual em seus shows, Sun Ra, já se apresentava com sua orquestra um complexo esquema estético visual e espacial que ia desde as suas vestimentas egípcias, até uma grande quantidade de luz estroboscópia no palco.

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        Sun Ra Arkestra, 1988. Foto: Craig Legg

Sun Ra, levou o Jazz a outra esfera de referência musical dentro da própria significância histórica, social e autofagista da música negra. Seu novo modelo de música e apresentação ao vivo refletiam um modo de vida perdido no oeste do mundo, uma música cheia de África, mas uma África cósmica, comum na antiguidade, e que agora estava novamente sendo apresentada e resgatada, como deveria ser, influenciadora de novos paradigmas sociais e culturais.

Foi aos 16 anos que Sun Ra começou a transcrever e fazer covers das músicas de Fletcher Henderson, a quem ele exaltaria como uma de suas influências mais importantes na música e para quem ele eventualmente escrevia arranjos musicais nesta época. Por quase um ano, no final da década de quarenta, eles dividiram shows no Club De Lisa em Chicago, sempre com Sun Ra no piano de alguma das últimas bandas da noite, que era quando os músicos mais jovens tinham a possibilidade de mostrar seu trabalho.

Sun Ra liderou grupos de música ainda no colégio e também no Alabama A&M University, onde estudou educação musical, tendo aulas de piano com Willa Randolph. Sendo influenciado pelas vozes dolorosas e triunfantes de Bessie Smith e Ethel Waterns, Sun Ra dedicou-se a harmonizar suas canções com os elementos extremos à música, buscando sempre novas sensações e sentimentos para transbordar em sua técnica.

Mudou-se para Chicago em 1946 e saiu em turnê com Wynonie Harris e Lil Green. Tocou informalmente com Coleman Hawkins, e trabalhou durante algum tempo com a banda Dukes of Swing, liderada pelo futuro baixista de Dave Brubeck, o exímio Gene Wright.

Foi na década de cinquenta que um protótipo do Sun Ra como conhecemos, começaria a tomar corpo. Nessa época ele trocou pela primeira vez oficialmente seu nome de batismo, sendo então chamado por “Le Sony’r Ra”, passando a dizer recorrentemente que nunca havia se chamado Herman Poole Blount, e que não se recordava de já ter conhecido essa pessoa.

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                              Sun Ra Arkestra

Nessa época sua música soava muito mais com o R&B do que com o jazz, e é possível ouvir isso na coletânea de singles lançada pelo selo Evidence. Ele chegou a gravar algumas faixas com Little Richard e foi arranjador de um grupo chamado Cosmic Rays. Acredito que esta mistura foi a semente plantada no coração vanguardista de Sun Ra, que a partir deste momento teve subsídios e influência artística para extrapolar em arte toda a sua visão metafísica e cósmica do mundo.

 

Suas músicas ainda eram consideradas anomalias. Seu órgão era mal compreendido devido algumas experimentações musicais, ainda limitadas, perto do que ele criaria anos à frente.

Nos anos sessenta, já em Chicago, ele e a sua banda começaram a utilizar em seus shows os trajes egípcios espaciais compostos por capas brilhantes e capacetes de metal. As roupas eram uma ligação visual entre passado e presente, e segundo os músicos, canalizavam toda a energia dos faraós.

Como a evolução desse modelo, eles passaram a inserir planetas e constelações em suas vestimentas e nos enfeites do palco. Além de inserir no mesmo contexto alguns deuses e figuras mitológicas do antigo Egito.

A Jornada Intergaláctica

Com o sucesso que vinha crescendo, ele pegou a banda e se mudou para Nova York, e foi nesse momento que o personagem tomou vida verdadeiramente. Ele passou a usar suas roupas de palco na rua o tempo todo, em plena luta pelos direitos civis americanos era possível encontrar um negro enorme andando normalmente no metrô, supermercado e restaurantes vestindo botas espaciais, capas e capacetes prateados e toda uma indumentária que supostamente não era desse mundo, sem esquecer o discurso que era forte, ímpar e completava toda essa personalidade. Entendo que a partir desse momento A Sun Ra Arkestra se tornou a entidade celestial que conhecemos hoje em dia.

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        Sun Ra Arkestra 1980. Foto: Leni Sinclair

Essa cena passou a ser inspiradora para os jovens negros americanos, o músico, poeta, cineasta, diretor de teatro e escritor, propunha um discurso totalmente crível e alucinante que tinha como base a consciência humana e a paz mundial. O artista afirmava não ser nativo do planeta terra, mas sim de Saturno.
Se autodenominando o “Deus da Raça”, propunha a libertação do povo afro-americano a partir de um retorno a Saturno, alcançando assim a libertação plena, ancestral, metafísica, referencial, espiritual e cultural de todos os afro-americanos sequestrados e escravizados.

Na década de setenta, ele decide voltar a Oakland a convite de Bobby Seale, vivendo então em uma casa de propriedade dos Panteras Negras, cujos uniformes, com sua presença, perderam um pouco da rigidez da farda militar, indo além das boinas pretas e jaquetas de couro, passando então a ter suas glamorosas botas lunares como parte indumentária.

Em 1972 a mudança total se concretiza, e é impossível não falar da importância do disco “Space is the Place” como ponto de ignição do sucesso comercial de Sun Ra, e também do início do seu ápice criativo como artista multimídia.

Neste disco ele, que já tocava piano com uma sensibilidade fora do comum, dobrando e/ou completando os espaços musicais dos metais (trombones, trompetes, sax e etc.), passou a proporcionar o encontro entre as seções musicais dentro da melodia, preenchendo todos os espaços audíveis de forma complexa e suave.

O músico sempre acreditou no que ele chamava de cores musicais, e tendo isso como figura principal em suas composições, ele não poupou esforços para extrapolar cada vez mais a experiência auditiva e sensorial, adquirindo pianos elétricos, teclados, clavinetes, sintetizadores e outros instrumentos de timbre semelhantes entre si, fato pouco comum nas composições em grupo/orquestra, especialmente de Jazz.

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                                                                                              Sun Ra em trajes egípcios. 1970

Tal experimentalismo sonoro o levou de volta às suas raízes no piano, uma espécie de circularidade africana (Sankofa) o colocando em destaque como bandleader de uma grande orquestra de jazz, papel que ele já exercia, mas que passou a executar de forma mais madura, porém experimental.

A introdução da música “Images”, contida neste disco, “Space is the place”, para mim, se assemelha a forma certeira e madura com que Duke Ellington compunha. Ele consegue definir o tempo, o ritmo e o sentimento com seu piano de forma não executada anteriormente, a evolução é nítida.

Neste disco acredito também que as mudanças temperamentais e rítmicas evocam McCoy Tyner no seu ápice criativo, porém num frenesi mais alto e levemente incômodo, moldando assim o estado de espírito do ouvinte sem que ele perceba, causando sensações diversas em seu corpo e mente. Tudo isso entendo ser preparação para a entrada de cada um dos solistas, que chegam em um bloco sonoro único de timbre semelhante, mas que de repente vão mudando o ritmo cada imposição sonora de seus instrumentos, iniciando a virtuose de cada um de seus solos.

É puro deleite musical, é vanguardismo espacial, bebido nas fontes de Duke Ellington, Thelonious Monk e McCoy Tyner. É a definição de autofagia entre os jazzmen colocada na prática, no encontro entre a realidade com o metafísico ancestral, é o que viria a ser chamado, pouco mais de vinte anos depois, de Afrofuturismo!

Para mim é mais que isso, é a maturidade plena musical e conhecimento de cada timbre dos instrumentos de sua Arkestra.

As Influências Reais

Já nos dias de hoje, saibam que a banda do ABC Paulista, Conde Favela Sexteto, interpretou algumas peças de Sun Ra Arkestra em sua homenagem, é a prova que nossos universos ancestrais vivem em choque a todo momento, sempre nos completando e inspirando enquanto povo preto e indivíduos universais.

O Sexteto formado em 2009 pelos músicos Alex Dias (contrabaixo acústico), Arthur Vital (guitarra), Buruga (sax tenor e flauta), Edson Ikê (trompete), Mabu Reis (trombone) e Rafael Cab (bateria), através de seu hardbopfreejazzsambajazz, movimentam a cena cultural periférica e preta da grande São Paulo, mostrando que a elitização do jazz é reversível, pois ele não foi feito para deleite de figurões e playboys tomando whisky e divagando sobre banalidades, ele foi feito para a comunhão de um povo, e consequentemente a união de toda a sociedade.

6-conde-favela-sexteto-em-apresentacao-no-free-the-jazz-japa-rolling-club-2016-foto-tomita                              Conde Favela Sexteto em apresentação no Free the Jazz/Japa Rolling Club. 2016. Foto Tomita

Jazz é resistência preta, é intensidade e deleite de um povo que foi e continua a ser barbarizado, porém é sensível no conviver entre os seus. É um povo que jamais deixou de se reconhecer em sua própria arte. Como dito pela própria banda Conde Favela Sexteto: “Jazz é coisa de encardido”!

Eles tocaram as emblemáticas “Space is the Place”, “Call All of Demons” e “Watusa”, e com certeza a nave-mãe capitaneada pelo Conde Favela Sexteto levou todos os presentes a dimensões nunca antes imaginadas através da incorporação de Sun Ra Arkestra, foi um encontro metafísico com o Mestre maior!

Só há uma certeza

jazz tem o poder de alterar a realidade e pavimentar a estrada metafísica entre ancestralidade e o cotidiano. Exú nos propões sete caminhos nessa terra, por outro lado, Sun Ra nos propôs o espaço e toda a sua imensidão cósmica como retorno e futuro possível. Ele mostrou que o universo preto paralelo é dimensão acessível, é toque, é afago, é sensibilidade matemática através das notas musicais, é rompimento com o establishiment, somente acreditando em si mesmo e em seu semelhante, então, se veja e se reconheça no outro.

jazz de Sun Ra Arkestra é o universo interior jorrando perspectivas e influenciando outros universos individuais, é na verdade o poder de apreciar e entender as estrelas e fazer delas nosso lar, pois “Space is the Place”.

https://www.youtube.com/watch?v=1qjiQwD7VCI

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