Gota D’Água {PRETA} é Okun.

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Projeto idealizado e com direção geral de Jé Oliveira. ESTREIA em fevereiro, aguardem. Da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes.

Gota D’Água {Preta} é muito mais que uma pequena gota de água, é Okun. Okun é oceano, é mar. E banho de mar, como sabemos, revitaliza nossos corpos, mentes e almas. Continuando no campo metafórico, assistir Gota D’Água {Preta} é um mergulho num mar de acertos técnicos, artísticos e históricos. A obra já é um clássico na cena teatral paulista, reúne uma miríade de artistas pretos super talentosos e tem arrebatado público e crítica especializada.

O espetáculo é dirigido, produzido e protagonizado por Jé de Oliveira (Coletivo Negro). Joana (Juçara Marçal) e Jazão (Jé de Oliveira), protagonistas da peça são pretos. Muito mais coerente para personagens que são periféricos e praticantes de religiões de matriz africana, mas, ao que consta, é inédito para o texto de Chico Buarque e Paulo Pontes que foi escrito em 1975, inspirado em Medéia, de Eurípedes.

Nele Jazão, jovem sambista com um samba sendo tocado em todas as rádios do Brasil, abandona Joana, mulher madura, com dois filhos para se casar com Alma, mais moça e filha de Creonte, dono da Vila do Meio Dia, onde se passa a narrativa.

Juçara Marçal, cantora de longa carreira de sucesso, interpreta Joana, ela traz potencia e melodia a essa mulher que simboliza o povo brasileiro, sofrido, traído e subjulgado que é. Quando fala e canta nos transporta a lugares de angústia, dor, abandono, solidão. Juçara está formidável. Um dos acertos da montagem (e são muitos) é a homogeneidade dos atores. O elenco é talentoso, afiado, não há discrepância entre um e outro. Isso faz com que a peça transcorra por 160 minutos como se fosse num piscar de olhos, o público não cansa de ver.

Juçara Marçal e Jé Oliveira

A fala é outro acerto, o texto versado não é enfadonho, o trabalho feito com os atores deixou os versos leves, e, em alguns momentos, imperceptíveis. O texto tá encaixado perfeitamente na boca dos atores. A oralidade é elemento fundamental da cultura africana, aqui temos mais um encontro feliz com a ancestralidade que a Gota D’Água {Preta} nos proporciona, potencializado pelo uso dos microfones, elemento onipresente no Hip-Hop (se eu tô com o microfone, é tudo no meu nome).

A peça é um musical e o diálogo proposto pela encenação entre Chico Buarque e Racionais MC’s, entre terreiro e Funk é primoroso. Com atabaques, saxofone, violão, flauta transversal e DJ’s em cena, a música é potente, pulsante, a cena musical é atemporal e sublinha ainda mais a atualidade da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes. A qualidade musical, assim como a dos atores, é nivelada no mais alto nível, com presença destacada para o musico Fernando Alabê, dominando diversos instrumentos de percussão ao longo do espetáculo. Cenário (Júlio Dojcsar) e figurinos (Eder Lopes) são caprichosos e funcionais.

Gota D’Água {Preta} insere o indivíduo preto no protagonismo da cena teatral paulistana (brasileira, talvez). Um dos espetáculos mais pungentes dos últimos tempos é produzido, dirigido, protagonizado, concebido e cantado por artistas pretos, em sua maioria, já que a peça conta com a presença de artistas brancos também, mas a tomada de narrativa está muito bem demarcada. No que tange periferia e religião de matriz africana o lugar de fala é nosso, do povo preto. Basta dar uma olhada nos demonstrativos sobre os indivíduos que estão nesses lugares, a montagem não negocia com isso, simplesmente assume seu lugar de poder.

A peça é tão poderosa que em determinado momento o público reverbera as falas de Joana numa discussão com Jazão. O público toma partido sim, são tantas as injustiças contra Joana que a revolta é inevitável por parte do público. Troque “Joana” por “povo” e teremos mais uma analogia com tempos atuais, na medida exata.

A peça tem muitas camadas a serem discutida, é profunda, assim como Okun, o mar, é preciso estar disposto a mergulhar e se deixar envolver por inteiro pela Gota D’Água {Preta}. No Brasil atualmente os únicos banhos que estamos acostumados é o banho de lama, seja no campo político (metafórico) ou no cotidiano, como nos crimes em Mariana e Brumadinho, porém, no espetáculo de Jé de Oliveira, o banho é de arte, conhecimento e de poder preto.

Gota D’Água {Preta} tem que ser vista, todos precisam ter contato com essa obra que é, certamente, uma obra de arte que será lembrada por muitos e muitos anos. A história está sendo feita agora por esses artistas, Jé de Oliveira crava fundo mais uma bandeira da arte preta no terreno caucasiano do teatro nacional.

* Crédito das fotos, Evandro Macedo, Divulgação.

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